No ano em que evidencia a comemoração dos 120 anos da sua marca “Mercedes”, o Grupo Daimler lançou uma campanha do modelo Mercedes-Benz GLA, na televisão.
Se os 120 anos não são um marco exclusivo da marca Mercedes-Benz; (a Skoda já tinha comemorado os seus 120 anos em 2015, por exemplo) o ano de 2020 ficará certamente marcado pela campanha publicitária do Mercedes-Benz GLA. Em Portugal, o anúncio do GLA foi visto no dia de Portugal (10 de junho), por entre as comemorações do feriado e o telejornal da noite.
A campanha publicitária gerou alguma indignação, que alguns leitores da Automotive nos fizeram chegar. Comprovámos que o anúncio foi veiculado no canal público da RTP1 (cerca das 20h35hs). O anúncio mostra um passageiro a atirar um objeto para fora do veículo, para a via pública, conforme aparece nas imagens.
Os limites morais da publicidade – saúde pública
Para uma análise e ligação entre passado e presente, pedimos um comentário a este caso ao Professor Doutor Henrique Lopes, da Unidade de Saúde Pública do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, que prontamente acedeu.
Segundo o Professor: “numa análise de comunicação devemos sempre separar o discurso visual do discurso simbólico, pois é pressuposto que cada take de um anúncio vise uma função em concreto e tenha sido testado cognitiva e emocionalmente.
Em função dessa análise, durante a construção da peça de comunicação e tomada de decisão conjunta entre a agência e o cliente, define-se um conjunto de indicadores para cada segmento do público-alvo: os OTS, os GRP’s, etc., a sua significação semiótica, até que se construa o eixo comunicacional.
Uma grande empresa multinacional como é a Mercedes-Benz, faz estes procedimentos por rotina e tem décadas de experiência acumulada. Não há falha por desconhecimento. Há sim o cumprimento de um objetivo, que (presumivelmente) é ilustrar um momento de corte no ciclo de vida e liberdade da protagonista. Isso fica claro e é atingido.
A questão, porém, é outra e não deve ser restrita à leitura deste anúncio em concreto: estão as empresas, na sua comunicação, alinhadas com os objetivos da Sociedade? Ou no limite, estão as empresas de algum modo obrigadas a ser socialmente corretas e responsáveis?
Há duas leituras dominantes nesta matéria: aqueles que pensam que as empresas apenas devem visar o lucro e responder perante os acionistas e os que acham que as empresas estão num ecossistema económico, devendo por isso ter uma responsabilidade social, a qual se exprime também na sua comunicação.
A Sociedade reage de modo diferente a ambas as aproximações: como exemplo da primeira, o famoso anúncio da Camel de 1946 , onde colocou os médicos como endorsement dos seus cigarros. Na segunda estratégia, temos entre muitos outros exemplos, o caso da Starbucks com o plano de contratação de 10.000 refugiados e plantação de árvores. Todos sabemos qual foi o futuro (atual presente) de ambas as marcas.
Falhas na Responsabilidade Social das Empresas, em particular se ligadas à Saúde ou ao Ambiente pagam-se sempre adiante no goodwill da Sociedade para com a marca, ainda que o sejam por minudências como é o caso.
Ao contrário, quanto mais uma marca for percebida como elemento orgânico do tecido económico e alinhada com os interesses da Sociedade, mais se enraíza nas dinâmicas sociais e económicas desse ecossistema. Depois o tempo trata de peneirar as ações e selecionar quem fica e com que grau de participação fica”, conclui o Professor Doutor Henrique Lopes.
Licitude e responsabilidade da mensagem
Então qual a licitude da mensagem, a responsabilidade social, ambiental e de saúde pública da marca Mercedes-Benz em Portugal?
O porta-voz da Guarda Nacional Republicana (GNR), Tenente-Coronel Hélder Barros, não comentando este caso em concreto, esclareceu à Automotive quanto às atitudes a tomar num automóvel que circule na via pública, dada a importância da temática.
Segundo o porta-voz da GNR “importa referir, abstratamente, que o arremesso de objetos para o exterior de veículos por parte dos seus ocupantes é uma prática que poderá colocar em perigo os outros utentes da via, bem como contribuir para a poluição do solo e, se estivermos perante o arremesso de beatas de cigarro, poderá contribuir para a ignição de fogos rurais.
Neste sentido, a GNR aconselha que os condutores se abstenham desta prática, até porque o Código da Estrada estipula no n.º 2 do artigo 79.º que “é proibido ao condutor e passageiros atirar quaisquer objetos para o exterior do veículo”, sendo esta conduta sancionada com uma coima de 60 a 300 euros”, referiu o Tenente-Coronel Hélder Barros.
A GNR tem tido uma comunicação bastante ativa no âmbito das atividades rodoviárias e, abordou agora em julho o tema do arremesso de objetos para fora dos carros, com a comunicação: “não deite a sua educação pela janela” (imagem acima).
Risco para os outros utilizadores da via pública
Por sua vez, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) pronunciou-se sobre o caso. Assim, “em termos de segurança e prevenção rodoviárias e do direito contraordenacional, cumpre à ANSR informar o seguinte: Quem, na qualidade de condutor ou passageiro, arremessar qualquer objeto para o exterior do veículo incorre na prática de uma contraordenação prevista ao abrigo do artigo 79 do Código da Estrada.
A mesma conduta, à luz do n.º 2 do artigo 3.º do Código da Estrada constitui, igualmente, a prática de uma contraordenação caso tal “embarace o trânsito ou comprometa a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis”, podendo ser sancionada com uma coima entre os 60 e os 300 euros, conforme previsto no número 3 do mesmo artigo.
Enquadrando-se a ação do spot televisivo nos artigos mencionados, é de referir que o arremesso do véu para o exterior do veículo, caso entre em contacto com outro veículo ou utilizador do espaço rodoviário, poderá resultar em diversas situações perigosas, como por exemplo: apanhar desprevenido o condutor de outro veículo, levando-o a efetuar uma manobra de evasão sem que este consiga tomar as devidas precauções; prejudicar a visibilidade dos condutores dos outros veículos; prejudicar a circulação dos veículos de 2 rodas; prejudicar a visibilidade e a mobilidade dos peões.
Assim, a ação praticada no spot televisivo em causa, para além de se poder configurar numa ou mais contraordenações, pode constituir um risco para a segurança rodoviária de todos os utilizadores do espaço rodoviário”, ressaltou a ANSR.
Uma questão de segurança…e civismo
Comentando sobre o caso em concreto, o Presidente do Conselho de Direção da Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP), José Miguel Trigoso, referiu que “não se trata apenas de falta de civismo, de falta de respeito pelos demais utentes da estrada e pelo meio ambiente, trata-se de uma questão de segurança”.
A ação pode causar acidentes e prejudicar os demais utentes da estrada. “Se o objeto atirado atinge um motociclista/ ciclista, um peão ou um veículo que vem logo atrás, o risco de acidentes é grande. O motociclista pode perder equilíbrio, o condutor do carro pode assustar-se e mudar repentinamente de direção ou ter a visão prejudicada, caso o objeto atinja o para-brisa, por exemplo”, adverte José Miguel Trigoso.
A prática de comportamentos e atitudes adequadas entre todos os utentes da estrada promove o respeito mútuo e a cidadania. “Um objeto atirado de um veículo pode causar um grave acidente, ainda mais envolvendo peões e motociclistas, que são utentes mais frágeis e estão mais expostos a riscos.
É essencial saber agir corretamente frente às diversas situações do dia a dia, reconhecendo e alterando os maus hábitos e posturas negativas, como a de atirar objetos para fora do carro. Um bom cidadão, geralmente, é também um bom condutor”, conclui José Miguel Trigoso.
Segundo a PRP, “atirar objetos para fora do carro não é apenas um ato que revela falta de civismo. É também considerado pelas autoridades uma ação punível com coima. De acordo com o Código da Estrada, atirar objetos pela janela para o exterior do veículo constitui uma multa (segundo o artigo 79.º – Poluição do solo e do ar)”, destaca a PRP.
A “auto-gestão” na Publicidade
O Código da Publicidade (Decreto-Lei 330/90), estipula no seu artigo 7º, alínea 2, letra “g” que “é proibida, nomeadamente, a publicidade que encoraje comportamentos prejudiciais à proteção do ambiente”. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), órgão regulador da atividade de comunicação social em Portugal, para os temas relacionados com publicidade remete para a entidade de Auto-Regulação Publicitária (ARP).
Segundo os estatutos da ARP divulgados no seu website, a ARP é “um compromisso voluntário que toda a Indústria assume de forma a respeitar e seguir as normas de conduta assentes nos princípios da legalidade, decência, honestidade e veracidade, promovendo assim a legalidade e a transparência da comunicação publicitária”.
Contactámos a ARP que recusou comentar este caso.
Segundo a ARP apenas o “Gabinete Técnico Jurídico (GTJ), Para-Órgão da ARP, tem competência para se pronunciar sobre campanhas publicitárias”. Adicionalmente, a ARP esclareceu-nos que neste caso concreto, o GTJ não tem competência para se pronunciar “sobre uma publicidade da qual a Automotive não é nem responsável nem co-responsável (uma vez que não lhes foi solicitada a veiculação do spot em causa). Sem prejuízo, sempre poderão sugerir à RTP ou ao próprio anunciante/ agência que solicitem a análise do referido anúncio ao GTJ”.
Contudo, verificámos nas deliberações da ARP, que em março deste ano a entidade decretou “a cessação de imediato” de uma campanha publicitária veiculada pela Renault Portugal (nas redes sociais e na imprensa escrita), no seguimento de uma queixa apresentada pela APCAP – Associação Portuguesa das Sociedades Concessionárias das Autoestradas e Pontes com Portagens. A campanha publicitária, em questão, já foi retirada.
A Revista Automotive agradece às várias entidades os esclarecimentos aqui prestados, bem como a análise e os comentários realizados.
Finalizamos com uma citação atribuída a Paulo de Tarso, que resume bem a intemporalidade de uma conduta ética numa sociedade livre: “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém”.